Messianismo negativo marca a nossa época
Achille Mbembe1
(Texto originalmente publicado em 03 de Fevereiro de 2017 na Mail&Guardian, acesso em: https://mg.co.za/article/2017-02-03-00-negative-messianism-marks-our-times/)
Eu acabo de retornar do Night of Ideas and Philosophy, uma maratona de debates que durou toda a noite, organizada pelo French Institute e por diversas outras instituições culturais de Nova York. O evento ocorreu na Biblioteca Central do Grand Army Plaza localizada no Brooklyn. De acordo com o departamento de polícia de Nova York, 7.229 pessoas compareceram a algum dos muitos palcos apresentados durante a noite.
A necessidade desse tipo de engajamento nunca foi tão urgente quanto é agora.
Eu fui convidado a realizar o discurso de abertura. Algumas horas antes da minha fala, as redes sociais estavam zunindo com notícias sobre protestos contra o grande número de pessoas que estavam presas em aeroportos ao redor dos Estados Unidos, devido ao decreto presidencial assinado pelo presidente Donald Trump. O decreto, com efeito, barrou muitos estrangeiros, residentes permanentes e refugiados, predominantemente de territórios muçulmanos, de ingressar ou re-ingressar nos Estados Unidos.
O nosso mundo está passando por um momento único de temor e confusão, para o qual ainda não se parece ter um nome. Porém, nomear a nossa época é parte do que está em jogo.
Ao menos isto é claro: estamos numa época de enredamento planetário. Mas, não há apenas a “planetariedade” nesse dilema. Épocas de enredamento planetário propiciam todos os tipos de acelerações e recrudescimentos.
Elas permitem a renovada produção de coisas, formas e imaginários — barrocos, grotescos e distópicos. Tais formas lutam para gerar a sua própria atualidade por meio de pura brutalidade, excesso e estupefação.
Do púlpito onde eu estava, olhei para a enorme multidão reunida no pátio da biblioteca. Tive um sentimento distinto de que muitos ali estavam genuinamente apavorados pelo que o último ciclo eleitoral estadunidense produziu.
Talvez, em meio ao pavor, eles estavam chegando à conclusão de que as coisas poderiam realmente piorar. Durante uma semana e com uma fria brutalidade, a Casa Branca emitiu uma série de decretos presidenciais. Testemunhando incrédulos o que agora era um fato, talvez muitos da platéia estivessem tomando consciência de que as coisas que sempre imaginaram como improváveis poderiam de fato acontecer.
Duas diposições metafísicas parecem engolfar o nosso presente planetário: uma em que o futuro se encontra no passado e a outra em que o futuro fundamentalmente abre para a destruição e o nada.
Toda pequena diferença é agora imbuída de qualidades ontológicas. Há pouco consenso a respeito do que constitui a realidade e como acessá-la.
Com o mercado tendo se tornado o principal mecanismo de validação da verdade, a tendência em direção a um implacável empobrecimento do real se agrava.
A conciliação dos dois princípios divergentes – o mercado competitivo, por um lado, e um conjunto de benefícios e direitos adquiridos a partir de demandas sociais por outro – atribuiu à ordem liberal do pós-guerra uma aparência de estabilidade. Hoje, o destino do capitalismo não está estruturalmente ligado àquele da democracia liberal.
Convencidos da destruição inevitável, muitos perguntam: “Por que esperar? Por que não trazê-la agora? Por que não acabar com tudo isso agora, visto que, o que virá, irá nos destruir de qualquer maneira?”
Isso é messianismo negativo.
Messianismo negativo é um messianismo que danificou a ideia de redenção. Ele não é sobre salvação.
Na sua version mineure, trata-se de sobrevivencialismo. Na sua version majeure, a vingança é o seu sonho. Ele é sobre martírio, a pressa de fugir antes do apocalipse e, por fim, suicídio coletivo. O messianismo negativo constitui a sustentação metafísica dessa nossa época planetária. Ele é o que desperta uma renovada força política de pura violência em suas formas de martírio ou tecno-milenarismo.
Messianismo negativo não sente necessidade de buscar ou promover qualquer forma de comunidade. De fato, agir pelo comum é condenado como impossível — uma traição. Ele quer que as pessoas se sintam envergonhadas de onde elas veem, de quem são e porquê estão aqui. Assim, as força a almejar apenas uma coisa: um apartheid sem restrições.
Em razão disso vemos uma renovada vontade de separar, de erigir muros — vontade de matar, oposta à vontade de cuidar; vontade de cortar todas as relações com os indesejados, oposta à vontade de engajamento no exigente trabalho de reparar os laços que foram quebrados.
Então, há o retorno ao animismo, talvez a melhor forma de descrever a convergência — e algumas vezes fusão— entre nós enquanto pessoas e os objetos, artefatos e tecnologias que atualmente nos suprimem e nos engolem.
A nossa condição perante a tecnologia e o retorno ao animismo não ocorrem sem perigos à liberdade em nossa era de cripto-facismo. Nesta era da razão eletrônica, a mídia computacional e as tecnologias têm lançado um poder alucinatório desconhecido até então pela história da humanidade. O conceito de evidência tem sido desacreditado e, com isso, gerado confusão nos modos de responsabilização porque não há responsabilização sem alguma forma de evidência.
Por outro lado, as últimas décadas do século XX foram marcadas pela universalização do princípio de mercado.
Tendo alcançado a sua máxima capacidade de velocidade, circulação e vôo, o capital financeiro está agora mais do que apenas ditando o seu próprio regime temporal. Ele busca reproduzir a si mesmo por conta própria, em uma série infinita de débitos insolventes. A lógica de escalonamento própria à estrutura do capitalismo global está hoje desenfreada.
Num nível mais profundo, a vítima de todos esses processos combinados é a própria democracia liberal. Não há futuro democrático num mundo onde não há fatos ou num mundo sem evidência — isto é, responsabilização. Tal mundo é, por definição, hostil às ideias mesmas de razão e liberdade.
A questão, assim sendo, que enfrentamos nos Estados Unidos, na Europa e em outras partes do mundo é: por que nos encontramos perigosamente patinando no que cada vez mais parece ser uma camada fina de gelo político, cultural e ético?
O que isso indica sobre o futuro da razão, da liberdade e da democracia – democracia entendida como uma responsabilidade planetária e compartilhada em relação a todos os habitantes da Terra, humanos e não-humanos?
(Tradução de Daniel Donato)
1 Achille Mbembe é professor e pesquisador em História e Política no Wits Institute for Social and Economic Research.