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A ambivalência da Técnica

A ambivalência da técnica: da emancipação à dominação

Vinícius Ramos Pires

Introdução: A Propósito de Uma Teoria Crítica

O primeiro passo deste texto consiste em apresentar um esboço geral do que seja uma teoria crítica da sociedade a fim de delimitá-la em sua especificidade com relação a outras abordagens existentes nas ciências humanas e na filosofia. É o que pretendemos fazer com certa brevidade nesta Introdução.

De acordo com Nobre (2004), num primeiro momento, quando se pensa a ideia de uma teoria, ela é pensada sempre como elemento de uma contraposição cujo pólo correspondente é a prática. Portanto, concebe-se a teoria junto de prática, mas sempre a partir da pressuposição de que as duas são diferentes e distantes. E isso se mostra em dois diferentes sentidos de teoria. No primeiro, uma teoria é concebida como uma elaboração teórica cuja finalidade se volta para mostrar como as coisas são. A prática é então a aplicação dessa teoria ao real, aplicação que comporta incompatibilidades que necessitam ser superadas e corrigidas para que a teoria possa ser aplicada perfeitamente. Quanto ao outro sentido de teoria, esta não busca uma descrição do que é, mas do que as coisas deveriam ser. Aqui, a distância entre teoria e prática deve ser mantida, pois não se pretende que a teoria seja um construto plenamente correspondente ao mundo enquanto o que ele é, mas, pelo contrário, a teoria deve ser um ideal que oriente as ações no mundo, prefigurando as possibilidades do que ele pode ser.

É evidente que esses dois sentidos de teoria guardam seu quinhão de insuficiência. Uma teoria que busca ser uma mera descrição do mundo pode vir a ignorar o que o mundo potencialmente pode ser. Já uma teoria que pretende afirmar como as coisas devem ser, corre o risco de deixar passar ao largo o entendimento do que as coisas de fato são. Assim, “[…] estabelece-se um fosso entre teoria e prática que não pode ser transposto senão ao preço de eliminar do horizonte de reflexão a lógica própria de uma das duas dimensões fundamentais da vida humana: o ‘conhecer’ e o ‘agir’.”1

A proposta de uma teoria crítica é justamente proceder a uma superação desse fosso de modo que o conhecer (conhecer o mundo no que ele é) e o agir (agir no mundo que é com vistas a transformá-lo) não sejam governados por ordenamentos lógicos distintos, mas conectem-se de forma interdependente. É a partir dessa proposta elementar que se pode delinear a crítica. Crítica no sentido de que só é possível mostrar o que é tendo-se em vista o que pode ser; ou seja, enxergar no mundo as potencialidades já nele existentes, pois tais potencialidades são também parte do mundo e, enquanto tal, podem revelar o seu movimento, suas tendências, do mesmo modo que aquilo que se contrapõe a essas tendências e que impede a ocorrência de transformações. Assim,

do ponto de vista crítico […] a análise do existente a partir da realização do novo — que se insinua no existente mas ainda não é — permite a apresentação de como as “coisas são” como obstáculos à realização de suas potencialidades melhores: apresenta o existente do ponto de vista das oportunidades de emancipação à dominação vigente.2

O procedimento crítico é então aquele que vislumbra como o mundo poderia ser de forma melhor, livre das opressões existentes no presente que imobiliza o quadro social no que é e impede a efetivação de projetos e lutas emancipatórias. Cabe então identificar as potencialidades de emancipação que existem no mundo, do mesmo modo que seus obstáculos, para que então possa-se pretender apresentar as tendências que permitem essa emancipação. É essencial à Teoria Crítica produzir diagnósticos do mundo presente, o que mostra seu caráter histórico situado, tendo sempre como objeto de análise a organização social concreta com suas potencialidades e obstáculos. Mas não só diagnósticos: também são necessários prognósticos de como é possível alterar em sentido emancipatório a realidade social, quais medidas e ações são necessários para tanto. Essa é a dimensão de prática da Teoria Crítica, sendo um momento impreterível da própria teoria, que se confirma ou se desmente no curso histórico dos acontecimentos.

Tendo esses elementos em conta, pode-se concluir que a especificidade da teoria crítica é justamente “ […] seu interesse pelas condições emancipatórias socialmente existentes.”3Isso não quer dizer que apenas a Teoria Crítica tenha compromisso com a emancipação social, o que pode ser encontrado em pensadores socialistas utópicos e anarquistas, por exemplo. Todavia, o método de crítica ao capitalismo de autores ligados a essas correntes teóricas exibe limitações ao restringir-se a identificar um modelo de organização social injusto e a ele contrapor modelos que podem ser tomados como socialmente justos sem, contudo, apresentar as condições de possibilidade existentes para que esses modelos sejam viabilizados. A teoria crítica, por sua vez, “[…] se coloca uma forte exigência de fundamentar , de um ponto de vista imanente ao próprio objeto social, suas análises e diagnósticos sobre as condições de possibilidade e sobre os obstáculos existentes à emancipação.”4 Ou seja, à diferença das correntes teóricas mencionadas, o procedimento da teoria crítica busca fundamentar suas análises e encontrar possibilidades interiores à organização social da qual trata, e não apenas a partir da contraposição de uma situação pior e uma melhor sem identificar as possibilidades de transição de uma a outra.

Tal procedimento de análise social é claro nos trabalhos de Marx5. Este, ao proceder suas análises do sistema capitalista, não só pretendeu gerar uma descrição de seu funcionamento, mas também apresentar as contradições internas existentes em seu bojo e que seriam os elementos potenciais de suas própria superação. Aqui não nos ocuparemos em detalhes das análises de Marx sobre o capitalismo; nos restringiremos à exposição de alguns elementos presentes em O Manifesto do Partido Comunista, escrito em parceria com Friedrich Engels. Ali poderemos ver não só que o proletariado é a força emancipatória que permite a supressão do capitalismo, mas também a importância desempenhada pelo desenvolvimento da técnica nesse processo. Mais adiante, através de textos de Benjamin e Adorno e Horkheimer, será apresentado como a técnica possui, na verdade, um potencial ambíguo: pode ser uma força emancipatória bem como uma força repressora.

O Manifesto do Partido Comunista: a técnica como promessa emancipatória.

Marx e Engels enxergam na história humana uma constante que é, ao mesmo tempo, o elemento propulsor do desenvolvimento progressivo da história a diferentes estágios e modelos de organização social: a luta de classes. Por isso é significativo o período que abre o Capítulo 1 do Manifesto do Partido Comunista: “a história de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de classes”, que é uma “[…] luta sem tréguas, ora velada, ora aberta, luta que a cada etapa conduziu a uma transformação revolucionária de toda sociedade ou ao aniquilamento das duas classe em confronto.”6 As transições de modelos estruturais das sociedades ao longo da história humana é marcada, portanto, pela contínua superação do modelo vigente levada a cabo por um elemento interior, isto é, imanente a este. Uma classe dominante é sempre defrontada por uma outra classe em situação de julgo, e esta é responsável por implodir o sistema social existente e inaugurar um novo modelo de organização. A época em que Marx e Engels escrevem (1848) encontra sua especialidade no fato de que a divisão da sociedade se reduziu a duas classes antagônicas: a burguesia, classe dos possuidores dos meios de produção e empregadores do trabalho alheio; e o proletariado, que vende à burguesia sua força de trabalho a fim de sobreviver. Deste panorama, o desenlace lógico da dialética histórica elaborada por Marx e Engels é a superação da divisão da sociedade em classes: o proletariado, ao promover sua revolução, não acaba só com a burguesia, mas também com a própria noção de classe social. O processo contínuo de transformação das sociedades humanas ao longo da história encontra aí, enfim, seu repouso.

Ao se impor como classe social dominante e com isso estabelecer o sistema capitalista de produção e distribuição da riqueza, a burguesia cria também as condições de sua própria eliminação ao criar o proletariado. Entretanto, não basta à análise de Marx e Engels determinar que o papel histórico do proletariado seja esse; é necessário determinar o que existe na sociedade capitalista, o que a burguesia introduziu no objeto social, para que o proletariado possa efetivar a revolução. Ora, como dizem os autores, “[…] vemos que a burguesia moderna é produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de profundas transformações sociais nos modos de produção e nos meios de comunicação.”7 Ou seja, a burguesia é fruto do aperfeiçoamento das técnicas de produção, do desenvolvimento da indústria, da expansão dos meios de comunicação a um nível global. Pois são justamente esses fatores que permitiram o estabelecimento da sociedade burguesa e que permitirão também sua superação.

Pela própria dinâmica do capitalismo, a sociedade burguesa é permanentemente instável. A industrialização e o aperfeiçoamento do maquinismo contribuem de forma decisiva para uma produção de bens e mercadorias jamais vista, cujas benesses ficam acumuladas apenas entre a classe burguesa. As relações de produção e propriedade do capitalismo contribuem para o aumento massivo do contingente do proletariado e também para a pauperização cada vez maior de sua existência. A técnica permite um progressivo decréscimo do trabalho humano, o que implica em seu barateamento. Assim, a distância entre o nível de vida da burguesia e do proletariado se aprofunda constantemente. O que faz com que estes se rebelem a fim de garantir sua existência. Ao mesmo tempo a técnica permite a complefixação dessa rebelião, pois a industrialização concentra o proletariado, permite que se una e se organize em prol de suas causas e interesses, que entre na vida política, que se locomova através do meios de transporte, como a linha férrea, e forje seus movimentos de forma até mesmo global, e não apenas restrita a localidades distantes. Os proletários, antes competidores por postos de trabalho, a partir de sua crescente articulação formam um movimento de potencial revolucionário e capaz de suprimir a sociedade burguesa para criar uma sociedade sem classes. Assim, “com o desenvolvimento da grande indústria, vê ruir sob seus pés a base sobre a qual produz e apropria-se dos produtos. A burguesia produz, acima de tudo, seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inelutáveis.”8

Por essa breve exposição já é possível perceber a importância do papel da técnica na emancipação do proletariado. Ela desempenha, sobretudo, a função de forjar a união do proletariado, porque obriga a aglomeração das massas em centros urbanos onde a indústria se assenta e também permite uma comunicação mais rápida e eficaz entre os grupos. Podemos pensar no exemplo de uma imprensa operária que pode ser veiculada com muito mais velocidade graças aos meios de transporte mais velozes, disseminando ideias revolucionários com maior alcance e rapidez. Assim, como pontua Brunkhorst, “os meios de comunicação de massa, diz a tese central do Manifesto, são meio tanto da globalização dominada pelo capitalismo quanto da emancipação das massas em relação a todas as relações de dominação, capitalistas e pré-capitalistas.”9

É preciso, entretanto, levantar alguns defeitos dessa construção teórica de Marx e Engels. Em primeiro lugar, a concepção histórica de uma superação dialética inelutável da sociedade burguesa através de uma revolução proletária é extremamente teleológica. É como se a história não pudesse desembocar em qualquer outra conclusão. Esse aspecto teleológico também se apresenta à técnica: ela necessariamente servirá aos propósitos revolucionários do proletariado. Como já mencionado na Introdução, o critério de verdade dos prognósticos de uma teoria crítica é o desenrolar mesmo da história. No caso das pretensões teleológicas esboçadas por Marx e Engels, a história parece desmenti-los: mesmo nos países que passaram por uma revolução socialista, como a U.R.S.S, não se pode dizer que a sociedade sem classes fora criada. A ausência da burguesia não significou a ausência de uma divisão de classes. Além disso, o capitalismo conseguiu se reconfigurar de modo a absorver as demandas emancipatórias e preservar as relações de produção antes existentes através de reformas que não alteraram completamente a estrutura da sociedade. Portanto, não há superação necessária da sociedade de classes; bem como a técnica, em especial os meios de comunicação e transporte, não necessariamente servirão à emancipação do proletariado, como ficará mais claro à frente, a partir do estudo de Adorno e Horkheimer sobre a Indústria Cultural.

Em segundo lugar, Marx não supera o paradigma de uma sociedade produtivista. A sociedade burguesa é estruturada em torno do trabalho abstrato, que é o “trabalho remunerado, regido pelo mercado e organizado socialmente na forma capitalista.”10 Mas a sociedade comunista almejada por Marx não abandona a centralidade do trabalho em sua constituição, e sim reorganiza a distribuição dos meios de produção e do que é produzido. A ênfase no produtivismo permanece intocada.

Em suma, afirmar que a crítica radical empreendida por Marx permanecia fixada dentro do horizonte da utopia da sociedade do trabalho significava que a revolução do capitalismo visava à possibilidade de constituição de uma reorganização social fundada novamente no trabalho, mesmo que de outro tipo.11

Essa manutenção da centralidade do trabalho implica que as alterações em relação à sociedade burguesa ficam circunscritas apenas ao plano da distribuição dos recursos materiais, e não se reflete no pensamento.

De qualquer modo, o que identificamos em Marx e Engels a respeito da técnica é a uma primeira consideração de uma promessa de emancipação. Podemos entender a promessa que a técnica nos traz em dois níveis: 1) ela permite a disseminação de informação e cultura às massas de forma que não sejam mais uma posse exclusiva de um segmento bastante seleto da sociedade; 2) o avanço da técnica e seu emprego na produção pode significar a substituição total da necessidade do trabalho humano, liberando então os indivíduos da obrigação de trabalhar de modo que possam empregar sua existência em outras atividades e no que mais lhes aprouver. Mas a técnica não é apenas a promessa de emancipação: ela também serve a fins repressivos. Pode ser usada para a manipulação e a dominação material das massas.

No que se segue deste texto, nos ateremos a tratar da técnica no aspecto de suas possibilidades a nível cultural, primeiro como potencialidade de emancipação em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin, e depois como meio de repressão e controle em A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas de Adorno e Horkheimer.

Da promessa à desilusão: a ambivalência da reprodução técnica da arte

Em A obra de arte na era de sua repodutibilidade técnica Walter Benjamin diagnostica que a arte produzida no contexto do capitalismo tardio se diferencia profundamente da arte praticada até então. O que é decisivo para essa mudança é a reprodutibilidade técnica da arte. Segundo Benjamin, a arte sempre foi reprodutível: sempre se pode fazer cópias das pinturas e esculturas, por exemplo. Mas nada comparável ao que permitiu a invenção da fotografia no século XIX. Doravante, a reprodução das obras de arte alcança potencial inédito. As mãos habilidosas de um aplicado aprendiz que copiasse a tela de um mestre não serviriam para lhe alcançar a instantaneidade, não poderiam sob quaisquer circunstâncias burlar o laborioso tempo necessário para que cada pincelada se fundisse às outras até que a cópia espelhasse a pintura original. Mas diante da lente de uma câmera fotográfica, uma única obra se multiplica em incontáveis imagens idênticas e, enfim, pode se espalhar, chegar a pessoas que em outros tempos possuíam, no máximo, uma certeza frágil da existência de uma determinada obra sugerida tão somente pela vagueza de um nome.

Assim, um primeiro efeito da reprodução técnica da obra de arte a partir da capacidade da fotografia (que leva o processo de reprodução a uma escala industrial) é que a obra de arte deixa de possuir o que Benjamin chama de aura, que “é uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.”12 A aura traduz, portanto, o elemento de autenticidade de uma obra de arte determinada: ela é única, pois só pode ser presenciada aqui e agora, só pode ser vivenciada, contemplada em um contato direto e exclusivo. A obra de arte não repodutível mantém-se, portanto, afastada das massas e é privilégio de daqueles poucos que possuem meios para se deslocarem até essa obra. Ela se vincula a uma tradição, donde extrai sua importância e sua unicidade, tendo mesmo um valor de culto. A obra de arte envolvida pela aura tem uma função mágica e teológica, importando apenas sua existência, e não que seja vista.

A reprodutibilidade técnica da obra de arte permite a inversão disso. Primeiro porque a obra de arte deixa de ser circunscrita e chega até as pessoas, sem necessidade de elas se conduzirem até a obra. Sua autenticidade com isso perde importância, pois o testemunho direto do objeto artístico em sua materialidade e presença deixa de ser necessário. A obra de arte perde seu valor de culto, sua necessidade do aqui e agora, para ganhar valor de exponibilidade, tornando-se muito mais acessível, existindo agora em função da exposição e da fruição. Além disso, a reprodutibilidade técnica guarda autonomia em relação à obra de arte original. Com a fotografia, exemplifica Benajmin, poderiam ser acentuados aspectos e detalhes de uma obra que a simples contemplação não permitiria perceber. A obra arte, de certa forma, torna-se manipulável. Podemos pensar nas técnicas de colagem, que podem retirar a imagem de uma obra de arte do seu contexto para inseri-lo dentro de algo antes inimaginável, ou então de como a própria imagem de uma obra de arte pode ser inteiramente manipulada.

Fato é que a reprodutibilidade técnica põe abaixo a aura da obra de arte. Esta deixa de ter sua unicidade, seu valor de culto. O efeito imediato disso é que o acesso à arte e à cultura passa a ser muito mais democrático. Podemos pensar que a imprensa já permitiu isso ao gerar as condições de reprodução de textos em uma escala que os tornou acessíveis para além dos círculos acadêmicos e monásticos; mas ela esbarra na necessidade de alfabetização da população. Já a fotografia, e mais ainda o cinema falado, superam essa dificuldade e podem chegar a qualquer pessoa. E há um fator ainda mais importante do que isso. Benjamin diz que “muito se escreveu, no passado, de modo tão sutil como estéril, sobre a questão se a fotografia era ou não uma arte, sem que se colocasse a questão prévia de saber se a invenção da fotografia não havia alterado a própria natureza da arte.13 Ou seja, a reprodutibilidade técnica a partir do invento da fotografia gera uma ruptura em relação à arte tradicional: a arte a partir de agora é uma outra coisa, é essencialmente diferente.

O cinema é a forma de arte por excelência correspondente a essa nova natureza da arte, pois ele não pode existir apartado da reprodutibilidade técnica. Segundo Benjamin,

nas obras cinematográficas, a reprodutibilidade técnica do produto não é, como no caso da literatura ou da pintura, uma condição externa para sua difusão maciça. A reprodutibilidade técnica do filme tem seu fundamento imediato na técnica de sua produção. Esta não apenas permite, da forma mais imediata, a difusão em massa da obra cinematográfica, como a torna obrigatória. A difusão se torna obrigatória, porque a produção de um filme é tão cara que um consumidor que poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode mais pagar um filme.14

Uma obra cinematográfica não pode ser produzida em si sem o uso da técnica, sem todo o aparelhamento da qual é dependente, e nem mesmo sem ser direcionado às massas. E justamente por essa sua dependência intrínseca à reprodução técnica, o cinema é a forma de arte que melhor atende a demanda das massas. E isso, em primeiro lugar, porque o próprio fato de os atores atuarem diante de uma aparelhagem técnica permite uma relação diferente com o objeto técnico. Enquanto as massas trabalham junto às máquinas, onde alienam-se, onde submetem-se a provas mecânicas invisíveis impostas por essas máquinas, constituindo um processo de desumanização, os atores, por sua vez, que também precisam se provar diante de aparelhos, como os refletores e o microfone, quando o fazem conservam sua dignidade humana diante da aparelhagem, pois venceram o obstáculo desta, se sobressaíram em relação a ela no momento em que submetem-na a seu próprio benefício:

à noite, as mesmas massas enchem os cinemas para assistirem a vingança que o intérprete executa em nome delas, na medida em que o ator não somente afirma sua humanidade (ou o que aparece como tal aos olhos dos espectadores), como coloca esse aparelho a serviço do seu próprio triunfo.15

Assim, os atores em seu desempenho mostram que nem tudo o que é humano pode ser subtraído pela técnica, nem tudo pode ser alienado por esse elemento predominante que domina a sociedade moderna. A partir disso podemos mencionar também que o cinema proporciona um meio de adaptação da percepção humana à vida moderna, caracterizada pela descontinuidade e sucessão contínua que impede uma relação perceptiva de contemplação com o mundo. Benjamin considera que “a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência.”16 Isso quer dizer que a maneira de perceber nas sociedades humanas se transforma de acordo com as modificações técnicas e na maneira de viver. O cinema que se caracteriza pela exibição de uma sequência de imagens é a forma de arte que melhor adapta e “treina” a recepção ótica do espectador em seus momentos de distração à experiência estética volátil do mundo industrial em que vive.

Mas acima dessas características, e é o que faz do cinema de fato algo com potencial emancipatório, é o fato do cinema e seus produtos serem fruto de uma produção coletiva. No cinema é possível a participação ativa das próprias massas. As pessoas comuns podem ser filmadas, podem vir a fazer parte de um filme sendo elas mesmas, representando apenas elas mesmas. Essa possibilidade, que Benjamin vê concretizada nos filmes russos de seu tempo, permite que as massas se vejam no filme e tomem consciência do que são, desenvolvam uma consciência de classe. Nesse sentido, o cinema pode cumprir um papel revolucionário.

É certo que Benjamin não vê nessas mudanças e possibilidades emancipatórias que a reprodutibilidade técnica da arte abriu um processo teleológico em que a técnica conduziria a fins revolucionários necessariamente. Ele tem em vista que os meios de produção do cinema estão em posse de capitalistas e que estes os usam para seus propósitos, que são muito contrários à emancipação da classe trabalhadora. O cinema só pode ser politicamente usado pelas massas se estiver também liberado do domínio e da exploração do capitalismo. E essas tendências emancipatórias parecem bloqueadas se considerarmos o texto de Adorno e Horkheimer A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas. O cinema junto dos outros meios de comunicação de massa é utilizado, na verdade, para que haja uma aceitação geral e passiva do status quo.

Para Adorno e Horkheimer a “[…] cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança.”17 Ela é constituída a partir de setores — como rádio, cinema e revistas — que mantem uma coerência interna que se reflete numa coerência do conjunto. Isso quer dizer que formalmente são iguais. Nos meios de comunicação pelos quais a cultura é propagada o que importa é a própria forma. Pois esse sistema cultural não procura nada além de uma equalização de tudo que não significa propriamente uma ampliação do acesso aos bens culturais, e sim a forja de uma identidade total no meio social, que não permite qualquer elemento de diferenciação e singularidade. “A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a falsa unidade do universal e do particular. Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica…”18 E por causa dessa própria identidade da cultura de massas, que visa fundir a consciência individual a uma forma de cultura coletiva no qual todo pensamento seja o mesmo e qualquer elemento de negação seja excluído, o setor da economia chamado de Indústria Cultural não precisa dar conta da qualidade artística ou informativa do que produz. Sendo uma indústria, e não só pelo uso da técnica aplicada à produção, mas também pelos seus fins, o lucro, agora o ramo da cultura justifica-se por si mesmo, por sua própria existência, por ser um negócio. Porque precisa vender suas mercadorias, é-lhe justificado produzir o que produz.

Assim, não se pode dizer que se trata de uma cultura de massas. Se Benjamin via a possibilidade delas na produção da cultura e da arte, algo vindo delas, aqui essa possibilidade se fecha. O que existe, em verdade, é, como sintetiza bem Rodrigo Duarte,

o advento de um poderoso setor fabril, no qual a produção de construtos estéticos deveria conciliar demandas explícitas do público por entretenimento com necessidades imediatas de lucratividade e – last but not least – com a possibilidade de controle ideológico das massas que se mostravam propensas à adesão a pontos de vista antagônicos ao capitalismo recém entrado na sua fase monopolista (sindicalismo socialista, anarquismo, etc.).19

Nesse sentido há uma combinação interessante: um setor lucrativo que ao mesmo tempo opera pela manutenção do sistema do qual é parte: o capitalismo. Então essa igualdade existente nos produtos da Indústria Cultural provém não da necessidade de atender a demanda por produtos culturais geradas por uma sociedade organizada em massas concentradas, o que exigiria uma planificação dos produtos culturais disponíveis, mas pelo fato mesmo de que quem possui os meios de produção da cultura são os detentores do poder econômico, o que permite o fato de que

[…] a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre lógica da obra e do sistema social. Isso, porém, não deve ser atribuído a uma lei evolutiva da técnica enquanto tal, mas à sua função na economia atual.20

Por essa passagem pode-se perceber que a técnica em posse das elites será mobilizada sempre para a manutenção do sistema social presente. De novo nos deparamos com o fato de que não há um teleologia determinada na técnica que elimine seus usos repressivos. Ela não é essencialmente repressiva, mas pode ser usada para tanto, inclusive para abortar as possibilidades de emancipação social. No caso particular da indústria cultural, a técnica é mobilizada para a forja de uma falsa consciência, onde a realidade mostrada nos produtos culturais é afirmada como verdade única de tal forma que torna-se impossível aos indivíduos conceber outra alternativa: é neste momento em que o macrocosmo se identifica com o microcosmo.

A indústria cultural opera isso em uma contínua capacidade de absorção. É necessário retirar dos indivíduos sua posição de sujeitos. E isso é feito através da captura pela indústria cultural de todo elemento de espontaneidade que pode surgir entre as massas, pouco importando seu conteúdo, desde que possa ser imposto de forma a não causar qualquer movimento de contestação. As diferenciações mesmas não são importantes, e sim como elas podem ser usadas para classificação dos indivíduos entre grupos sociais e de consumidores. A indústria cultural integra um sistema econômico no qual ela é apenas um tipo de monopólio submetido a outros, como os ramos petrolífero e energético. Assim, cabe a indústria cultural fazer refletir na população a intenção dos setores para os quais opera.

Seu domínio é tão intenso que, de acordo com Adorno e Horkheimer, a indústria cultural é capaz de se apropriar do “esquematismo” das pessoas. Isto quer dizer que a própria percepção sensível do mundo é alterada pela indústria cultural. Ela, ao manipular os detalhes da forma que lhe for mais interessante, da forma como determinam as equipes de produção , em seus elementos visíveis e sonoros, condiciona a maneira como seus consumidores entram em contato com o mundo. A diferença entre a obra e a realidade se desfaz: o mundo é percebido como extensão do filme que se assistia no cinema. E tudo o que o filme ensina, os procedimentos dos personagens, o que esperar, é tomado como absolutamente real, à forma do próprio ser das coisas e impossível de modificação. E isso através de um processo de alcance global:

a violência da sociedade industrial instalou-se nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los alertamente. Cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho. É possível depreender de qualquer filme sonoro, de qualquer emissão de rádio, o impacto que não se poderia atribuir a nenhum deles isoladamente, mas só a todos em conjunto na sociedade. Inevitavelmente, cada manifestação da indústria cultural reproduz as pessoas tais como as modelou a indústria em seu todo. E todos os seus agentes, do producer às associações femininas, velam para que o processo da reprodução simples do espírito não leve à reprodução ampliada.21

A indústria cultural cumpre, portanto, um papel de reprodução mental dos indivíduos. Estes, arrancados à sua individualidade, perdem também sua liberdade. Tornam-se joguetes do sistema industrial do qual fazem parte. Imersos totalmente numa vida inteiramente regida pelo ritmo da indústria e do trabalho, caem numa heteronomia pacífica, incapaz de contestar. A indústria cultural cumpre um papel de eliminar da sociedade qualquer possibilidade de negatividade. O pensamento todo padronizado e repetido em cada um torna-se incapaz de conceber um mundo diferente. Isso veda quaisquer potenciais emancipatórios, qualquer espontaneidade vinda das pessoas. Suas tendências são todas governadas. Assim, a técnica que surgiu inicialmente como instrumento possuidor de uma promessa teleológica de emancipação, revela sua ambivalência: também é muito útil para reprimir, ou melhor, eliminar quaisquer potenciais emancipatórios e perturbadores que podem se agitar em meio ao objeto social. Se ela pode, por um lado, colocar cada vez mais os sujeitos em posse de si, por outro, ela também se oferece à eliminação da capacidade das pessoas se portarem como sujeitos.

Considerações Finais

Cabe agora fazer uma recapitulação que tentou se traçar neste texto. Partimos de uma tentativa modesta de delimitar o que é uma teoria crítica da sociedade. Esta é uma teoria que busca fazer diagnósticos das opressões existentes dentro da sociedade com vista nas possibilidades de emancipação imanentes existentes nessa sociedade. É uma análise do todo social que visa estabelecer as condições de possibilidade de suas transformação. A partir disso tentamos expor sem propósitos exaustivos como Marx e Engels identificaram no proletariado dos meados do século XIX a força emancipatória imanente à própria sociedade burguesa que iria necessariamente suprimi-la. E daí a importância da técnica, elemento central e definidor da existência da sociedade burguesa, que se presta, na verdade, a propósitos revolucionários ao criar e aumentar a massa de proletários e fornecer-lhe os meios de se organizar politicamente. A técnica até aqui aparece então como uma promessa teleológica de emancipação da classe social oprimida no capitalismo. Após isso buscamos considerar como essa promessa aparece nos trabalho de Benjamin e de Adorno e Horkheimer. No primeiro, a técnica que permite a reprodutibilidade em larga escala da obra de arte tem a potencialidade de desempenhar um papel emancipador das massas ao democratizar a arte e criar novas formas de arte, em especial o cinema, que podem desempenhar importante papel na tomada de consciência da classe trabalhadora sobre sua situação social. Já com Adorno e Horkheimer pretendemos expor, mesmo que limitadamente, a outra faceta que a técnica aplicada à produção da cultura pode assumir: de uma alienação e controle insuperável da consciência das massas. É importante então delinear uma conclusão mais imediata deste percurso: com Marx a técnica aparece como uma força que forçosamente conduziria ao caminho da emancipação revolucionária do proletariado. Em contraponto a Marx, tanto em Benjamin quanto em Adorno e Horkheimer existe a ciência de que a existência da técnica por si só não leva necessariamente a isso. Há nela um potencial mais ou menos plausível de que pode desempenhar funções emancipatórias dentro da sociedade, mas apenas se sua posse não estiver na mãos da classe dirigente, que monopoliza seu controle. Podemos concluir que a técnica não tem, portanto, um telos: ao que ela serve, quais possibilidades suas são ativadas, depende das mãos que a controlam.

Bibliografia

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1985

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo, SP: Brasiliense, 1994.

BRUNKHORST; Hauke. A Teoria Crítica e a análise da sociedade contemporânea de massa. In: RUSH, Fred (Org.). Teoria Crítica. Tradução de Beatriz Katinski; Regina Andrés Rebollo. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2008.

DUARTE, Rodrigo. A estética e a discussão sobre indústria cultural no Brasil. Ideia, Campinas. nº4, 2012.

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MELO, Rúrion. Teoria Crítica e os sentidos da emancipação. Caderno CRH, Salvador, v. 24, 2011.

NOBRE, Marcos. A teoria crítica. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2004.

1 NOBRE, 2004., p. 8-9.

2 Ibid., p.10-11.

3 MELO, 2011, p.249.

4 Ibid.

5 Marx viveu em um período bem anterior ao desenvolvimento dos trabalhos dos nomes mais imediatamente associados à teoria crítica, como Adorno, Horkheimer, Benjamin e Marcuse, membros mais conhecidos da primeira geração de teóricos críticos e ligados ao Instituto de Pesquisa Social baseado em Frankfurt. Mas como aponta Nobre (2004), nos textos de Horkheimer escritos nos anos 30, demarca-se como teoria crítica todo trabalho teórico que se produz tomando como base a obra de Marx. Assim, Marx é a inspiração e marco inicial da teoria crítica.

6 MARX e ENGELS, 2012, p.23-24.

7 Ibid., p.26.

8 Ibid., p.45.

9 BRUNKHORST, 2008, p.300.

10 MELO, 2011, p.255.

11 Ibid. p.256.

12 BENJAMIN, 1994, p.170.

13 Ibid, p.176.

14 Ibid. p.172.

15 Ibid., p.179.

16 Ibid.,p.169.

17 ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p.99.

18 Ibid., p.100.

19 DUARTE, 2012, p.78.

20 ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p.100.

21 Ibid., p.105.