Salve-se quem puder ou cooperação solidária

Por Leandra R. Gonçalves*

O mega-feriadão de São Paulo (entre os dias 20 e 25 de maio) gerou repercussões para além da metrópole paulista. A ação proposta pela prefeitura teve como objetivo tentar elevar os índices de isolamento social. Porém, com o anúncio surgiram as manifestações contrárias dos prefeitos das cidades do litoral paulista, principalmente da Baixada Santista e Litoral Norte. A preocupação é justificada. O epicentro da Covid-19 está concentrado na região metropolitana e ainda, logo no início da quarentena, o fluxo de pessoas se deslocando para o litoral aumentou significativamente.

A experiência com esse episódio indica a ausência de uma cultura de planejamento. Mas não apenas isso. Indica uma incipiente e falha gestão macrorregional. Seria esperado que, em um território tão interdependente e conectado por regiões metropolitanas, o todo seria maior do que a soma das partes. É exatamente nesses casos que se espera a implementação de uma governança policêntrica, quando múltiplos órgãos interagem e cooperam para criar e aplicar regras num território específico. O policentrismo é considerado uma das melhores formas de alcançar respostas coletivas a perturbações ou mudanças complexas, como é o caso de pandemias ou até mesmo desastres climáticos. E é nesse sentido que as cidades podem juntar os seus recursos, criar sinergias e complementaridades funcionais, através de uma governança efetiva com o objetivo de construir uma agenda conjunta e complementar.

A cidade de São Paulo funciona como um polo irradiador de bens e serviços para uma região expandida, institucionalizada em 2014 e chamada de macrometrópole paulista (MMP). A MMP é um dos maiores aglomerados urbanos do Hemisfério Sul, e abriga a Região Metropolitana de São Paulo, Baixada Santista, Campinas e Sorocaba, o Vale do Paraíba e o Litoral Norte e as Aglomerações Urbanas de Jundiaí e de Piracicaba e a Unidade Regional Bragantina.

Essa região cobre uma área de 53,4 mil quilômetros quadrados, o equivalente a 21,5% do Estado de São Paulo, incluindo 174 municípios e 50% da área urbanizada de todo o Estado. Não obstante, abriga os principais portos e aeroportos brasileiros, como o Porto de Santos, os aeroportos de Guarulhos e Viracopos, refinarias e exploração de petróleo e gás, além de um complexo rodoviário e ferroviário, grandes polos de conhecimento, tecnologia e inovação do país. A importância socioeconômica da região é traduzida em seus números e evidencia a relevância desse território, no contexto do Estado de São Paulo, com quase 75% da população e sendo responsável por mais de 80% do PIB do Estado.

Pois é nesse território, relevante economicamente e altamente conectado por fluxos de pessoas, bens e serviços, que um estudo realizado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) afirma que se configura o principal eixo de dispersão da Covid-19, e que mais de 90% dos casos paulistas estariam ali concentrados e a partir dali dispersados.

As ações tardaram a começar. E não aconteceram de forma coordenada. Ao invés de uma cooperação solidária entre as jurisdições que compõem a região macrometropolitana, o que se testemunhou foi um verdadeiro “salve-se quem puder”. A prefeitura de São Paulo decretou feriado, as demais cidades costeiras não acompanharam a decisão, e pelo contrário, criaram barreiras sanitárias nas rodovias para impedir a contaminação pelos turistas vindos da metrópole.  A atitude ilustra não apenas o despreparo de gestores públicos para lidar com crises da proporção de uma pandemia, mas também a ausência de uma cultura de planejamento macrometropolitano.

Experiência californiana

Em situação semelhante, a região do Bay Area, na Califórnia (EUA), se comportou de maneira bem distinta desde o início da pandemia, e hoje já colhe os frutos da atitude cooperativa. Logo no início, no dia 15 de março de 2020, dois dias antes da grande festividade do dia de São Patrício, quando normalmente seriam realizados grandes eventos da região, os gestores públicos da área da saúde se reuniram nas primeiras horas do dia, para traçar um plano coletivo de combate da pandemia. A Covid-19 estava avançando rapidamente por São Francisco e toda a região da Baía. Os condados de Alameda, Contra Costa, Marin, São Francisco, San Mateo e Santa Clara, além da cidade de Berkeley, decidiram, antes mesmo da decisão do governo do Estado da Califórnia, que iriam instalar a quarentena de forma conjunta.

Os anos anteriores de experiência com a AIDS, por exemplo, fizeram os gestores públicos das 7 cidades entenderem que embora eles representassem diferentes jurisdições, deveriam operar e agir como uma única região, principalmente no que tange a doenças infecciosas e de alta taxa de transmissão. A maior parte dos condados, talvez não por acaso, é administrada por mulheres. O tema tem sido também relevante no nível internacional, que ressaltou que países governados por mulheres estavam reagindo melhor à pandemia.

Embora devemos resistir a tirar conclusões precipitadas, vale aprender e observar as lições sobre o que pode ajudar a enfrentar não apenas essa crise, mas outras no futuro. Esse estilo de liderança feminino pode se tornar cada vez mais relevante, e a despeito da alta desproporção de mulheres em posição de liderança política, as mesmas têm demonstrado uma maior compreensão e sensibilidade para lidar com problemas complexos. Assim, à medida que as consequências das mudanças climáticas aumentam, provavelmente haverá mais crises decorrentes de condições climáticas extremas e outros desastres naturais. Inundações e ressacas como recentemente aconteceram em Santos (SP), por exemplo, exigem medidas cooperativas tão quanto à pandemia.

Embora existam importantes diferenças entre as regiões do Bay Area, na Califórnia, e a região macrometropolitana, é notável a ausência de ação coordenada e policêntrica em um território que deveria supostamente funcionar de forma integrada. A macrometrópole paulista foi justamente criada visando um desenvolvimento integrado, mas a Covid-19 vem para escancarar a ausência dessa almejada integração.

O episódio do mega-feriadão demonstra que a cooperação entre os municípios macrometropolitanos ainda faz parte de um futuro distante. Para que o todo seja maior que a soma de suas partes é preciso cooperação e solidariedade macrometropolitana.

* Leandra R. Gonçalves é pesquisadora do MacroAmb na Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é pesquisadora visitante da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, Estados Unidos. Também é co-fundadora da Liga das Mulheres pelos Oceanos.

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